azul caixão
Julia Bicalho Mendes
desde
quando
deserto
Poemas cronologicamente expostos sob um ano de deserto (e deserção).
Ed. Patuá (2014)
Este livro foi escrito durante um ano de deserções, estrangeirismos, fragmentos, poemas demasiadamente curtos que não deveriam sequer publicar-se em livros, mas mesmo assim foram cronologicamente colados e assinados. São pequenas respirações enquanto o corpo que parte de uma cidade à outra, de um deserto à outro, não consegue se ater a nada. E por isso talvez tenha tido uma vida também curta, em seus únicos 100 exemplares.
aprender outros idiomas é travestir-se
tocar parte de si mesmo – que parecia enviesada – é esticar-se para dentro e para fora – urgir – multiplicar na existência – a língua expande-se na forma. – e por conseqüência a vida.
curto-circuito
meu desespero
dura o tempo exato
da agonia
de uma barata
depois fico eufórica
saio com a boca pintada
avanço sobre o brooklyn
com o sorriso massivo
de quem tem todo o chão
o coito
o coice
e o beijo de um morto no asfalto
primeiro minuto de volta
trouxe o deserto
entristeço
do abismo
não sobro
hachuras de uma vida torcida
pingam
sobre o varal
“o vento sopra ao largo
quando a casa é de passagem”
me mantenho
– dependurada não sei onde
– feita não sei de quê
– escrevendo não sei para quem
aproximo a loucura
de tudo - o que existe
para quem ama
NY, 10.06.2013
[o que vem] primeiro a partida ou a vontade de partir
a primeira palavra, quase involuntária, “mãe”, ou “mamãe”, para onde viemos?
acordo entre os seus dentes
tiro com a língua
pedaços de estrelas
que ficaram enfiados
nas gengivas
caio sobre o corpo
enfastiado da noite
acordo de 5 em 5 minutos
para ver se ainda
estou
[viva]
SP 03.08.13
saturno em escorpião
afina-se para dentro
borbulha
avança
vaza no que sobra
e quando menos
dilacera
saturno dança
com seu escorpião
no meio de um vortex
onde os vagalumes
criam suas casas
azul-violeta-indigo-blue
suave-será-a-dança
dos que uivam
bushwick
“viver quase a sós atrai, pouco a pouco,
os absolutamente sós.” Llansol
gingo estranhamente o pé esquerdo
afasto do calcanhar para as pontas dos dedos
e depois para o calcanhar novamente
uma pedra no sapato
salto na quadra errada ou pego
a direção errada
sorrio para a fagulha do brooklyn
hello mami what can I do for you
sintetizo o dia
mascando o último chiclete
esquecido ou guardado no bolso detrás
um moribundo me pede um cigarro
é claro, mesmo que os cigarros
sejam tão caros e que esta merda
me acompanhe
ele sorri
não sorria tanto
chuto a calçada
tento me livrar da pedra que já
não está mais lá
aceno para um velhinho dançando
por que sorriem tanto?,
me afasto
me ocupo ou me oculto sob a sombra
de uma careta qualquer
dou mais uma volta no quarteirão errado
o moribundo me espera na esquina
já é tarde, mami
volta pra casa
NY, 19.08.2013
justifico a tarde
não quero mais fazer a laundry
meu corpo
com algum alvoroço
destrói o enigma do tempo
eu que apoiei
sobre a língua
todas as mentiras
lambo o papel português
na loucura
de que a palavra aconteça
continuo vagando
meu bairro morre de fome
e de sono
desfilo
feito clown
na tristeza litúrgica
de defender deus dele mesmo
e quanto mais falo
deus
menos o conheço
Bushwick 29.08.13
sétima nota sobre o jardim
encontro um lugar no jardim que faz silêncio.
12horas: o contraste das luzes é ainda maior. as árvores parecem embaralhar-se diante da sombra exagerada que penetra por debaixo das folhas. a copa é completamente violada pela luz do sol. imagino como é ter duas faces.
Palo Alto, 10.09.13
um fantasma voltou no meu lugar
o silêncio pode ser alarmante quando você abre as memórias, o vento, o tempo e começa a escutar coisas que não esperava – existirem – todas naquele espaço – enquanto você regurgitava, trepava, sentava, fumava, ou simplesmente esperava alguma coisa acontecer.
NY, 18.09.13